O atual e delicado equilíbrio entre o STF e o Congresso


Coluna Daniel Cidade
Palpitando os fatos


O atual e delicado equilíbrio entre o STF e o Congresso
Publicado em 07/11/2019.
(*) Originalmente publicado em 20/10/2019 em Blog The Política.


Não é surpresa para ninguém que busque se manter informado sobre a política brasileira que o cenário atual anda repleto de impasses entre as cúpulas dos Poderes da República: Executivo, Legislativo e Judiciário.

Apesar de a maioria dos cidadãos saber quais são os três Poderes que compõe a União, poucos, entretanto, entendem as atribuições de cada Poder e como se dão os relacionamentos entre eles. Neste sentido, nossa Constituição define que os Poderes são independentes e harmônicos entre si. Ironicamente, é nesse termo “harmônicos” que reside, se não todo, uma boa parte do problema.

O leitor menos familiarizado com o assunto pode estar em dúvida se sou louco ou se tenho algum motivo estranho para considerar a harmonia um problema. De fato, a harmonia em si não é um problema, mas sim a forma como ela foi desenhada na Constituição, que concentrou muitos poderes no Congresso Nacional, em especial no Senado, e esvaziou o Poder Executivo. Em algum outro momento debateremos mais a fundo essa divisão dos Poderes, seus pontos positivos e negativos e o que nos levou a um arranjo de presidencialismo de coalizão que só funcionou nos últimos anos com suas engrenagens lubrificadas por vantagens lícitas e ilícitas, resultando no que alguns jornalistas apelidaram de “cleptocracia”.

Dessa falsa concentração de poder no Presidente é que deriva nossa mania nacional de achar que tudo de bom ou de ruim no país é da responsabilidade do Poder Executivo, esquecendo das funções dos outros Poderes. Felizmente, esse hábito vem se modificando, bem aos poucos, nesse atual governo, exatamente pelo respeito que o Presidente guarda pelas atribuições e independência dos demais Poderes, cuja recíproca está longe de ser verdadeira.

Mas hoje nos concentraremos no atual imbróglio em que se encontram – juntos e misturados – nosso Supremo Tribunal Federal e nosso Congresso. Pela miopia que nos faz atribuir ao Presidente a responsabilidade por tudo, nos concentramos em enxergar que Presidente indicou cada Ministro do STF: em ordem cronológica, Celso de Mello foi indicado por Sarney; Marco Aurélio por Collor; Gilmar Mendes por FHC; Lewandowski, Cármen Lúcia e Toffoli por Lula; Fux, Rosa Weber, Barroso e Fachin por Dilma; e Moraes por Temer após o impeachment de Dilma.

Para complicar mais, no espaço de tempo entre a indicação de Fachin por Dilma e seu afastamento no processo de impeachment, foi aprovada a famosa “PEC da bengala”, em tramitação desde 2005 e que ampliou de 70 para 75 anos a idade de aposentadoria dos ministros do STF, Tribunais Superiores e TCU. O objetivo era reduzir o número de nomeações que a presidente petista poderia fazer em seu segundo mandato, num momento em que a Operação Lava-Jato já sacudia os alicerces do poder em Brasília e que a aposentadoria precoce do Ministro Joaquim Barbosa lhe conferiu a possibilidade de uma indicação extra. Se esta emenda constitucional não estivesse vigente, já estariam aposentados hoje, por ordem de idade, os Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Lewandowski e Rosa Weber.

Ocorre, porém, que esta visão de que o presidente “escolhe” o Ministro do STF, e até mesmo de que o Presidente Bolsonaro poderia indicar o Ministro Sérgio Moro na primeira vaga que surgisse no STF, só funciona quando se tem o Congresso a favor. Vimos recentemente que não é bem assim com a complicada indicação à PGR que se transformou num verdadeiro FLA X FLU nas redes sociais. Na verdade, o processo de escolha funciona da seguinte forma: (i) o Presidente da República indica um nome; (ii) este nome é submetido a uma sabatina no Senado e a votação;(iii) se a indicação for aprovada, o Presidente da República faz a nomeação, do contrário o processo se inicia novamente com uma nova indicação do Presidente da República. Ou seja, a palavra final é do Plenário do Senado, não do Presidente da República.

Ao contrário do processo de entrada de um Ministro no Supremo, que tem sempre o mesmo fluxo, sua saída pode se dar por diferentes motivos: morte; aposentadoria, a pedido ou compulsória por idade; ou afastamento por julgamento por crime de responsabilidade (impeachment), que compete exclusivamente ao Senado. Lembrando que os crimes de responsabilidade de Ministros do STF, parlamentares e até do Presidente e Ministros do Poder Executivo são julgados no Congresso e que os demais crimes destes agentes, até mesmo de Ministros do STF, são julgados no Supremo, fica clara a dependência entre eles quando a separação de Poderes é ferida, como ocorreu na cleptocracia petista.

Não precisamos nem mesmo entrar em detalhes sobre o exorbitante número de pedidos de impeachment contra Ministros do Supremo que foram enviados ao Senado e que, displicente e propositalmente, dormem no “berço esplêndido” de uma gaveta da Mesa Diretora da Casa. Não seria absurdo supor a hipótese de que seja um agradecimento simbólico ao tempo de adormecimento das muitíssimas denúncias contra Senadores e Deputados que descansam sossegadas nas gavetas dos Ministros do Supremo e em volume cada vez maior com o sucesso da Operação Lava-Jato.

Não se trata apenas de reverter condenações já proferidas por qualquer artimanha jurídica ou tentar invalidar ou pôr em descrédito as delações premiadas. Muito mais importante que isso, nas palavras do Romero Jucá em gravação, é “estancar essa sangria”. Há de se ter em mente que muitos dos atuais Senadores e Deputados – inclusive o presidente da Câmara – têm seus nomes ou de pessoas próximas citados em delação. O mesmo ocorre no STF, cujo presidente já figura em duas delações (Odebrecht e Palocci).

Nessa hipótese, não seria absurdo supor que o Congresso aprove a Lei do Abuso de Autoridade, apelidada nas redes sociais de Lei Bandido Feliz, de forma a engessar o trabalho dos juízes e levar mais e mais casos de corrupção a serem discutidos/revistos no STF. Mas, ainda nesta mesma hipótese, como moeda de troca o STF teria que enfraquecer a Lava-Jato e, para isso, vale rever a prisão em segunda instância, invalidar processos com uma alteração na ordem de manifestação de réus não prevista na legislação, tentar se valer de provas ilegais como as gravações dos “AraraHackers” para tentar tornar suspeitos os agentes da Justiça e do MP envolvidos na Lava-Jato.

Mas, para que seja possível o STF fazer isso tudo, voltamos ao Congresso. Ao criar interpretações retroativas na legislação penal, para muitos juristas o Supremo está invadindo as atribuições legislativas do Congresso, a quem cabe defendê-las pelo texto constitucional. E o fazem contando com o fato de que o Senado continuará garantindo a permanência dos ministros que são alvo de pedido(s) de impeachment. Em suma: se o STF está extrapolando seus limites e fazendo todas as barbaridades que temos assistido, só as faz porque o Senado assim o quer. Se não o quisesse já teria posto o freio que a Constituição, a Lei do Impeachment e o Regimento do Senado preveem.

Um forte abraço,
Daniel Cidade

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